À sombra do bairro
Já não me lembro direito
do rosto dela. Lembro-me
do seu corpo, docemente
azul, iluminado apenas
pela luz noturna que entrava
pela porta da varanda do quarto
Da última vez, deixei-a dormindo
coberta por um lençol leve
Me sentei no banco de trás do Uber
O motorista usava uma máscara
cirúrgica e a OMS tinha acabado
de anunciar a pandemia
Haveria ainda tempo de olhar
num relance a cidade que saía
da noite oleosa e quente como
suas mãos apoiadas no meu peito?
Essas imagens começavam
a sumir na máscara branca
que cortava a noite ofegante
Todos os encontros que tive
depois daquele dia
foram tumultuados e aflitos
Pareciam trazer
uma espécie de urgência
de quem se despede
de si mesmo ou do mundo
Mas o amor deslizava arredio
e ondulava
como a sombra do bairro
adiando esse mal despertar.
Poemas datados
No oco da casa
como no miolo vazio
da mão
os desejos se tornam aéreos
Andam pelo ar
como um pássaro
abatido
em torvelinho no céu quase vazio
Andam pelo ar
– o ar irrespirável
Todo dia sinto
que não chega mais
aos pulmões
Já não respiro nada
A voz, o brinquedo dos lábios
se esboroam nas sobras
da memória
Heitor Ferraz Mello nasceu na França, em 1964. Mora no Brasil desde os dois anos de idade. Formou-se em jornalismo e é mestre em Literatura Brasileira pela USP, com uma dissertação sobre a poesia de Francisco Alvim. Trabalhou muitos anos como jornalista e crítico de literatura, tendo colaborado em diversos jornais e revistas brasileiras. É professor de jornalismo e língua portuguesa na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Em poesia, publicou, entre outros, Coisas Imediatas (1996-2004), Um a menos (2009), e Meu Semelhante (2016), todos publicados pela 7 Letras.